terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Nas Asas de Um Anjo...


   Estava frio lá fora. A neve caia leve e suave no jardim que outrora radiou com as flores cintilantes da Primavera. Outrora as folhas de Outono que caíram, emolduraram o chão fresco e deprimido, e abrandaram o ritmo da pequena cidade de Flying Valley. A lareira consolava cada divisão da casa estilo villa italiana, enquanto ele colocava pequenos troncos de madeira com os seus braços fortes e firmes, reacendendo a chama. O calor espalhava o doce cheiro a pinho do soalho, acabado de encerar, pelos recantos da casa, misturando-se com o delicioso aroma do frango com natas que gratinava no pequeno forno. Sentiu-se o vento forte bater nas portadas verde-musgo que fizeram estremecer as janelas altas de vidro. Ouvia-se o uivo que entrava pelo estreito buraco da chaminé que me arrepiou o corpo e me levou o olhar para o seu rosto. A sua feição demonstrava despreocupação como era hábito.
   Dei por mim a perguntar porque nunca via sinal de inquietação na sua cara. Sempre que algo de mal acontecia ele resolvia o assunto astuciosamente e nunca se zangava com nada. Despertei dos meus pensamentos quando o vi empoleirado no balcão de mármore rosalia com duas taças de cristal austríaco na sua frente. Retirou-se em direcção à adega apinhada de vinhos e extraiu um Porto Ruby. Serviu-o com pedaços de queijo de cabra curado como aperitivo, para descontrairmos do temporal que se aproximava veloz e melancólico, enquanto o jantar aquecia calmo e animado.
   Fitei os seus olhos claros como a água - eram abrangidos de um azul-turquesa lembrando pequenas pedras preciosas combinando com o loiro-escuro do seu cabelo e a sua pele morena. Perdi alguns minutos observando-o mas não me contribuiu o olhar. Ele estava longe da imagem daquela cozinha rústica, aventurava-se por outros mundos a mim desconhecidos. Que raio, não parava de me questionar por onde andava a sua mente, o que escondiam os seus pensamentos…
   Acabou de beber o vinho e direccionou-se à sala de jantar sem uma única palavra. Moveu o arranjo de tulipas vermelhas que permanecia em cima da mesa de vidro e compôs a mesa com naperons em linho, pratos de cerâmica quadrados estilo chinês, talheres de prata e o restante do nosso melhor serviço. Que ocasião especial nos esperava. Não fazíamos anos de casados, nem era nenhum feriado exclusivo… Apenas libertou uma palavra de contentamento quando me aproximei com a travessa quente do frango entre as mãos. 
   Presenciei dirigir-se em corrida à cozinha para buscar a saladeira e a garrafa de vinho branco adamado, que esperavam no balcão. Serviu-me o jantar como um verdadeiro cavalheiro e iniciou uma conversa sobre fazer o que está certo dando exemplos do que aconteceria com isto e com aquilo, falando sobre o que achamos melhor para as pessoas e o que se devia fazer em relação ao assunto. Não percebi o que queria com aquela inesperada palestra, então rapidamente alterei o tema e comecei por lhe mostrar como poderíamos tornar aquela noite gélida num momento mais caloroso entre os dois. Comecei por deliciar a sua boca com um beijo, em seguida subi para as orelhas que petisquei suavemente e desci para o pescoço onde degustei da sua macieza. 
   Ele respondeu com algum desânimo, e disse-me que não era o melhor momento para a situação que ambicionava, mas logo mudou de ideias quando lhe coloquei a mão entre as pernas e a enfiei dentro das calças massajando-lhe o âmago. O calor instaurou-se no seu corpo, fazendo-o soltar um gemido. Agarrou-me a boca com os seus lábios e senti a sua língua percorrer-me o espírito – aquele homem sabia como levar uma mulher aos limites. Então pegou-me pela cintura e encostou-me ao seu corpo. Prendi as pernas em torno dele e abracei-lhe o pescoço, enquanto trincava e brincava com o meu.
   Batemos contra não sei quantos objectos, enquanto nos retirávamos para o andar de cima, até que caímos nas escadas de madeira e rimos de prazer. Ele por baixo agarrou-me pelas nádegas e atou-me ao seu corpo forte. Senti o inchaço do seu músculo contra a cintura humedecida pelo calor que me percorria o físico, ele estava pronto para tudo. Fitei os seus olhos e reparei no desejo que lhe trespassava no espírito – ele tencionava possuir-me ali mesmo. Arrancou-me a blusa branca com os dentes e colocou as mãos por baixo do soutien vermelho, que em seguida arrebatou com a intensidade do incómodo que lhe causava. Desapertei-lhe os botões das calças de ganga Levi’s azuis escuras e atirei as minhas sandálias negras tipo romanas para o lado. Rodopia-mos um em cima do outro como duas ondas no oceano, mas sentimos o percalço das escadas sombrias que nos importunavam o acto.
   Corremos feito adolescentes escadas acima e atiramo-nos de um salto para a cama de casal king size com lençóis de cetim negros. Ele retirou a pólo azul-celeste que lhe cobria o peito, que tapava aquele tronco esculpido que me fazia lembrar um deus grego, enquanto eu retirava a saia estilo retro em tafetá cinzento. Atirei-me ao seu corpo fugazmente. Senti-o quente e apelativo. O seu físico colava ao meu como lapas numa falésia fortemente fixadas nas rochas sem se soltarem com a pujança das ondas. Os meus seios duros e tesos tocavam no seu peito molhado pela tentação, que lhe arrepiou e elevou o sexo, fazendo com que na minha mente se passassem mil e uma maneiras de o agarrar e possuir. Projectava aventurar-me e destapar a sua corporação moldada pelo tempo, deixando-o entrar em mim sem medo do desafio. Queria devora-lo como se fosse uma simples maça encarnada, degustando do seu sabor, consumindo cada pedaço da pele sumarenta que o resguardava. Mas perdi-me nos seus olhos que encaravam os meus com mistério, poderia perder uma eternidade observando-os. 
   Fitava-os tentando resolver o enigma que criou, procurando os segredos que a camuflagem que lhe encobria a alma escondia… Num ápice, a sua boca puxou-me como um íman, criaram-se faíscas que pairavam no ar, incendiando o espaço em nosso redor. Salivava como um cão à espera do seu alimento. Queira morder-lhe, devorar-lhe a carne, saborear as linhas do seu corpo com os lábios que me ardiam de desejo.
    As suas mãos engenhosas percorram o meu espírito com habilidade. Pararam no centro do meu fogo e movimentaram-se num jogo de dedos lembrando uma aranha habilidosa tecendo a sua teia para obter mantimento. Em seguida avizinhou a língua que movimentou como um flautista num recital tocando eficaz e deliciosamente o seu instrumento. Ele sabia como abalroar-me e levar-me ao êxtase. Sabia que explodia se não tivesse a sua labareda para queimar o rastilho. Libertei a primeira onde de prazer que me estimulou todas as nervuras do corpo, mas o que ele tinha em mente não acabava por ali.
   Afastou a boca carnuda do meu íntimo e virou-me do avesso como quem vira carne flamejante no espeto. Agarrou-me pelas ancas e passou a tesão por entre os meus glúteos como uma criança brincando com um iô-iô para cima e para baixo. Parou na porta do meu ventre e entrou rapidamente num único impulso. Gemi de prazer enquanto ele me palmava agradavelmente as coxas, pedindo mais e mais de mim. Senti o peito suado encostar-se nas minhas costas delicadas e em seguida aquelas mãos viris a agarrarem-me os peitos, evocando um viking agarrando um pedaço de carne para sustento da sua masculinidade. A velocidade ia aumentando, parecia que tinha apanhado um comboio super veloz e sem paragens. As ancas estremeciam-me com o bater da pélvis enfurecida pelo delírio do acto. Os músculos da vulva contraiam-se e descontraiam-se num ritmo infernal e deslumbrante.
   Virou-me de frente e encaixou-me no seu corpo como peças de um puzzle. Levantou-se e dirigiu-se para a parede alaranjada do quarto, sem demoras. Senti as costas colidirem contra o cimento frio. Então agarrei-lhe os cabelos com os arrepios que se criavam devido à fusão de temperaturas. Ele elevou-me à lua com o seu foguetão, que me ergueu o corpo num combate espacial. Não aguentava mais e aliviei de novo o deleite. Ele não parou, e o facto de eu ter gozado novamente só o fez sentir-se poderoso e querer mais.
   Os seus olhos miraram os meus peitos retesados e agarraram-se a eles como um bebé faminto – ele trincava, e lambia o cume das montanhas, fazendo-me delirar de contentamento. Lançou-se de novo para a cama deixando-se dominar desta vez pelo meu físico. Acorrentei-me a ele e avancei em frente como um cavalo movendo-se veloz e agilmente por entre prados selvagens. Ele vociferava palavras que me elevavam a consciência, deixando-me num estado fora de orbita. Então endireitei as pernas e comecei a saltar como uma medalha de ouro no trampolim. Pulei mais e mais, tentando alcançar as estrelas no céu enquanto ele se agarrava aos lençóis da cama com as forças que lhe restavam. 
   Os espasmos apoderavam-se de mim. Não suportava mais. Desci à terra, aterrei e deixei escorrer o líquido que restava. Ele levantou o tronco sem romper a nossa ligação e assentou os lábios junto aos meus. Senti os nervos que lhe percorriam a pele quando nos abraçamos mutuamente. De rompante, expeliu a actividade que aguardava ansiosa dentro dele e sorriu silenciosamente. Caímos derrotados da batalha que acontecera e estendemo-nos no colchão macio. Encostei a minha cabeça ao seu peito e deixei-me embalar pela sua mão que me amansava e acariciava os longos cabelos negros. A respiração ofegante deu lugar a uma harmoniosa melodia que me fez adormecer nos seus braços.
   Sonhei com o paraíso a seu lado… 

   Senti uma pequena picada de luz que me irritou as pálpebras. Abri os olhos um pouco desnorteada e contemplei um ser perfeitamente constituído com uma par de asas longas e esbranquiçadas que lhe desabrochavam da pele. Quem era aquela criatura angelical - ainda estaria a sonhar? … Belisquei-me e senti a dor que se exprimiu num pequeno rugido, a criatura revirou-se na minha direcção e reparei então, nas lágrimas que lhe caiam do rosto impecavelmente esculpido, como duas quedas de água atormentadas. Senti a tensão conquistar terreno. Ele tinha a cara perfeita e apetecível dele, vestia as jeans que lhe havia oferecido no natal passado, que lhe faziam sobressair o luxurioso rabo, e quando suspirou um “desculpa”, reparei na voz que se enquadrava no seu timbre. As lágrimas geladas desceram-me pelo rosto que observava turvamente o semblante transformado – era ele.
   Senti a aragem que corria lá fora, quando abriu as portas de madeira e vidro que davam entrada para a varanda do quarto. Reviveu e memorizou cada momento, cada parte do quarto parando nos meus olhos. Encarei os deles – já não via o azul profundo. Avistava apenas a escuridão que lhe encobria a alma. Desviou a cara numa despedida condenada e proferiu um adeus sentido que lhe pesava a aura. Correu na direcção da varanda e atirou-se livremente ao vento como um pássaro que esteve preso em cativeiro. A aflição conquistou-me. Assustada corri feroz para a varanda e murmurei o seu nome – Noah. Avistei o anjo flutuando de asas estendidas em direcção ao sol. Gritei o seu nome. Gritei até me doer a voz e apenas restar alguns sussurros na minha garganta dorida.
   Deixei-me cair estarrecida nos azulejos bege do chão da varanda. A minha figura formou uma posição de defesa - estava enrolada como um feto no útero de uma mãe, protegido. Não sabia o que havia acabado de acontecer, a vida perdera a sua lógica. Afinal quem era aquele homem com quem convivi durante tanto tempo. A minha mente foi perseguida por mil e uma questões sobre tudo o que se passara à minha volta nas últimas temporadas. A neve voltou a cair depois da sua debandada. Caia e entranhava-se no meu corpo. O branco contrastava com o negro do meu cabelo, com o corpo despido no relento da cidade.
   As horas foram passando, o dia avançava. Fechei-me num mundo imaginário criado pelo meu pensamento. Visualizei o seu sorriso que brilhava como uma gruta cheia de diamantes, lembrei-me do seu sotaque, do seu amável toque, da noite que havíamos passado juntos… O barulho de um carro que passou na rua fez-me acordar da ilusão que criara. Olhei uma última vez a paisagem vazia e morta. Tinha chegado o limite das lágrimas e o corpo não aguentava expelir mais um fluido. Decidi voltar para dentro para desfalecer isolada na cama.
   Entrei e fechei as portas com o suspiro que me restava. Aproximava-me da cama quando avistei uma carta com o nome Aqua cravado, e encostada a ela, uma rosa encarnada com um laço de cetim da mesma cor. Era o meu nome, o nome pelo qual ele me tratava. Aproximei-me aterrorizada – o que estaria ali escrito naquele pedaço de nada. Acomodei-me na cama com uma almofada e comecei por ler:

“Era meia-noite e não sabia o que dizer, por onde começar. Permanecias deitada saboreando o momento que gastaras comigo. Como poderia dizer-te que iria partir sem retorno? Não consegui estragar o momento de satisfação que partilhamos. Queria que soubesses como é difícil estar com alguém, quando sabemos que temos de nos despedir amarguradamente um dia. Nunca te quis magoar, contudo habituei-me à tua presença, já não sabia o que era não te ter por perto. Não sabia como era viver sem contemplar a tua forma engraçada vagueando pela casa em cuecas, apenas com a minha camisa preta que te cobria a totalidade do corpo. Eras como um milagre que me enchia o coração de contentamento.
   Eu era um anjo caído lançado na terra para viver eternamente como um humano. Mas estar contigo matava-me a cada instante. Gostava de poder ter escolha, mas como um ser eterno não aguentaria ver a tua destruição. Não suportaria ver o teu corpo enfraquecer a cada dia e eu ali igual com o passar do tempo, ocupando a tua juventude, a tua existência. Mesmo assim, não me consigo perdoar por ter de te deixar. Quebrei a confiança que tinhas em mim quando te expulsei sem um único aviso prévio. Entrei num jogo e lancei os dados, mas as cartas não estavam a meu favor, saberia que perderia tudo um dia. Sabia que o que sentimento que me encobria o cerne estava amaldiçoado e não havia maneira de quebrar a imprecação cometida.
   Quis afastar-me antes. Tencionei fugir quando o nosso envolvimento se tornou numa relação além do aprazimento. Onde algo que me transcendia, e que não sabia explicar, me aprisionava a ti. Quis sentir o sentimento dos homens e deixei-me envolver e absorver pela sua demência. Provei o prazer e caí nos pecados da carne que me levaram à loucura. Deixei-me enfeitiçar pela tua fragilidade. Pela tua mortalidade, pelo teu aspecto sensual exuberante e o ar exótico do teu rosto. Senti o que os outros anjos acusavam nos actos dos homens. A paixão, o desejo, a necessidade de ter alguém ao nosso lado para a podermos cuidar e amar.
   Quero que apagues da memória os momentos que felizes, passamos juntos. Desejo que queimes os corpos terrestres que te façam recordar a minha imagem, para que não sofras e prossigas com o teu destino. Sei que não era comigo que ele se enredava. Sofro com as feridas que me queimam o corpo por não te ter ao meu lado, mas sofreria mais se assistisse ao teu desaparecimento um dia. Sentirei a tua falta que me esgotara dolorosamente a alma com cada passar do tempo. Era o mais correcto a fazer. Estou desiludido por te ter iludido com um começo de uma história que rompi insensatamente. Sei que te causei dor e que nem tudo sarará mas espero que me perdoes um dia. Do teu eterno prisioneiro, Noah.”
   As lágrimas mancharam a tinta da caneta no papel, onde as palavras descritas desapareceram com o passar violento do rio. Estendi-me na cama que agora sentia falta da sua presença, tentando encontrar sentido para tudo o que se passara. Ele infiltrou-se por entre as defesas e obstáculos que havia construído sem cair ou tropeçar. A mim, faltava-me a coragem para saltar de um precipício para o outro e recomeçar de novo. Podia escorregar e não conseguir voltar. Ou podia voltar a ficar magoada, marcada com arranhões e hematomas que nem a água pura e cristalina cicatrizaria. Restava-me reconstruir as barreiras que com facilidade desmoronaram.
   Levantei-me e andei desnorteada pela casa. Desci as escadas, mas não sabia o que fazer dentro daquele gigante vazio. Cada divisão lembrava-me a sua face. O seu cheiro ainda permanece no ar humedecido pela lareira da sala. Olho as fotografias dos dois, firmemente pousadas numa estante de madeira pintada, e questiono-me estupidamente porque me deixou, mas não encontro solução possível. Não me apercebi que se afastava a cada dia. Não descobri o que me transmitia na noite fogosamente passada - era a despedida. Foi o último momento onde os nossos corpos se entrelaçaram e se defrontaram juntos. E agora como seria dali para a frente. Não queria recordar aquela noite como o momento em que a minha vida desabou e virou do avesso.
   Estava à beira do suicídio. Com cada isolado passo dado, enterrava-me mais na solidão em que me encontrava. Não via a luz brilhante. Não encontrava saída do buraco obscuro, por onde pudesse respirar e libertar o sufoco que me atormentava a alma. Não estava zangada, apenas confusa com o que se havia passado. Não sabia o que restaria de mim depois da sua partida. Contudo tomou o que achou por certo e não o condeno por isso, apenas penso que me devia a possibilidade de ter escolhido. 
   Outrora houve uma luz que me incendiava o dia, que se entranhava em todas as partes do organismo. No final com o seu desamparo, só me restou a triste solidão e o sofrimento.

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